domingo, 12 de outubro de 2014

FEL DA VIDA

                                           Foto: Valesca P/Jardim/10/2014

Hoje não queria ter vida
    não essa, fel em uva fervida
      hoje não queria ter nada
        ser vazia como brisa
          hoje não queria saber
            apenas desfazer, a vida

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DOR

                                          Foto: Valesca S.


O vazio dói mais que o preencher.
Em meu coração não há mais espaço para tanto vazio.
Não tentes inundar-me de restos nem de espaços preenchidos por mágoas.
Basta as minhas.
Cultivo-as com audácia de quem já sobrepôs as angústias.
A tela está plena de informações e minha cara, tarraçada, engana.
Tenho olhos de vidro, frágeis como teia.
Mas não tenho veneno, como a aranha ou a cobra.
Tenho algo mais letal: amor.
E é dele que existo vazio.

Dor - leitura poética - 10/2014
Valesca Santos

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

DEU PRA TI

  


O ingresso entre as mãos era a prova de que tudo havia sido real. Ele fizera mesmo aquilo, ela pensou, dobrando e enfiando com cuidado o papel, já um pouco amassado e rasgado, no bolso de trás da calça jeans. Ergueu os olhos a tempo de vê-lo se aproximar sorrindo.
  - Tudo?
  - Humm.
  - Tá sozinha?
  - Não.
  - Esperando alguém...
  - Humm...
  - Então?
  - Tu tá aqui, não tá?
  - Tô.
  - Então?
  Edwiges e Rafael riem juntos. Depois observam em silêncio o ir e vir das pessoas pelo Parque da Redenção, ao longo do lago, espelho anil do céu. Ela enfim quebra o silêncio contemplativo e diz:
  - Tô meio Down..
  - Baixo astral?
  Edwiges concorda com um aceno de cabeça e um sorriso torto. Rafael olha sobre suas cabeças e aponta o indicador para o alto dizendo:
  - Sonhos que voam.
  Edwiges ergue o olhar. Os dois, como se estivessem combinado, se inclinam para trás e apoiam a nuca no encosto do banco de madeira. As três-marias rosa pink, reparou Edwiges, nutrem as borboletas. Um verdadeiro banquete, pensou vendo-as revoar alvoroçadas sobre as flores. Contra a luz do sol e o azul do céu, elas lembravam flocos doces, macios, silenciosos e multicoloridos. Admirando-as com um sorriso, Edwiges completa:
  - Coisas de magia... Sei lá.
  Rafael sorri, inclina-se para frente e apoia os cotovelos sobre os joelhos, vislumbrando o reflexo do céu no lago.
  Edwiges faz o mesmo e fita-o de lado. Rafael está com aquele sorriso maroto, que o faz parecer mais novo. Olhos azuis que dançam silenciosos como o revoar das borboletas, que agitam o jardim interno dela num redemoinho de vento inesperado.
  Rafael mantém seus olhos no lago e diz:
  - Somos paralelos.
  - Duas metades - ela retruca.
  - Dois lados.
  - Yin e Yang.
  - Marco zero bipolar.
  Edwiges ri e sacode a cabeça: Rafael sempre vencia nos argumentos. Depois, aponta o dedo em direção às borboletas e diz: 
  - As asas... Tem dois lados direitos.
  - O avesso é controverso.
  - Não. É inexistente.
  Em seguida, fita-a e pisca, sorrindo ainda mais. Edwiges sente que seu jardim interno explode num desabrochar desenfreado, iluminando-se com o azul daquele olhar.
  - Elas morrem - ela diz, usando seu recurso mórbido, que não funcionava com Rafael.
  - É a Redenção! - ele contesta, virando-se de frente para ela. 
  Edwiges sente que raízes brotam de seus pés e mãos em busca do sétimo céu no olhar dançante. Muda de opinião sentando-se ereta a fim de espantá-las para debaixo do banco e, entrelaçando os dedos das mãos sobre o colo, pergunta meio enciumada:
  - E as gurias? Ainda estão tri a fim?
  - Rafael gargalha solto e joga a cabeça para trás, do jeito que Edwiges gostava de ver.
  - Algumas.
  Edwiges se levanta com medo das raízes que atingiram um limite perigoso, e caminha até a margem do lago por sobre as pétalas pink espalhadas pela grama. para e cruza os braços sobre a boca do estômago, inutilmente tentando impedir um novo revoar.
  Rafael a segue. Para ao seu lado e diz:
  - Eu menti.
  Ela o encara.
  Ele continua:
  - Não são algumas. Mas uma. A Beladona.
  Edwiges sorri, depois acrescenta:
  - Ela não conta. É uma gata.
  - Tente explicar isso a ela!
  Edwiges o olha, mas logo desvia o olhar para além do lago. Para longe dos olhos azuis profundos.
  - A culpa é tua. Enche a bichana de mimos!
Ele tem um sorriso bobo nos lábios, que contrasta com seu olhar perturbador e astuto. Fora aquele olhar, recapitula Edwiges, que em Garopaba, numa noite de luar, ela se apaixonara. Ordenou então à sua mente que não entendesse. Lera em algum lugar que entender podia ser uma condenação e não entender, a salvação.
  Mas Rafael era seu sonho mágico. Um sonho que ela viu enevoar-se quando o verão acabou: ele voltou para sua livraria no Bom Fim e ela para o primeiro ano de geologia na UFRGS. Seguiram suas vidas paralelas à existência daquele primeiro encontro. Ela de shorts e pés descalços, e ele de terno e gravata, afundando os sapatos na areia enquanto recitava Machado de Assis. Perdera-o - ela pensou quando ele se foi como um sonho que termina antes do fim.
  Até que um dia, sua amiga e colega de quarto, Janaína, resolveu bancar a cupido e apresentá-la a um amigo. Diante da recusa de Edwiges, Janaína despejou sobre a amiga uma ladainha completa dos predicados do tal rapaz, destacando os melhores, segundo ela: culto, maduro e sexy. Tri legal. Janaína convidou-o para o chima do sábado à tarde na Redenção, onde ela e Edwiges costumavam passear. E foi assim que Edwiges reencontrou Rafael. Deu-se conta então, de que agora estavam no mesmo lugar do reencontro. Porém sem Janaína que, para alívio dos dois, passava uma temporada em Londres, estudando Artes Cênicas. 
  Rafael mantêm os olhos no lago e murmura:
  - Tá grilada.
  Edwiges fica de frente para ele pensando que, desde sempre, Rafael podia ver além das profundezas de sua crosta terrestre, ambígua e confusa. Estreitando os olhos por causa do sol forte, ela diz:
  - Acabei de me formar. Tu já tens uma livraria.
  - Voltei a estudar e os caras me chamam de tio.
  - Minha família é gremista.
  - E a minha é colorada.
  - Eu misturo doces com salgados.
  - Eu adoro cuca com linguiça.
  - Eu tenho um cachorro! - ela exclama, como se aquilo fosse um forte empecilho.
  - A Beladona vai gostar do Portaluppi. Ela pensa que é uma chihuahua - ele anuncia, despreocupado.
  Quase sem argumentos, Edwiges apenas fita o silêncio. Ainda tentava entender o que dera nele - um homem tímido e reservado - para pedi-la em casamento no intervalo do Grenal, no Beira-Rio. Na hora, ela só conseguiu pedir uma semana para responder. Tempo razoável - dissera assustada diante da platéia. E combinaram de se ver na redenção, no final do dia. Ali estavam. 
  Edwiges remexe no seu antigo baú de desculpas esfarrapadas e encontra um último argumento. Fita-a nos olhos e diz:
  - Eu usei fermento de bolo na massa do pão.
  Rafael segura o riso. Descruza os braços e enfia as mãos nos bolsos da jeans, aproximando-se um passo à frente. Ele a mantêm presa em seu olhar e sussurra, num tom de conspiração:
  - Eu confundi um sex shop com um free shop.
  Edwiges desfaz a ruga entre as sobrancelhas e ri. Ela o imita e enfia as mãos nos bolsos da jeans e brinca:
  - Meu pai é churrasqueiro. Tu és vegetariano.
  - Odeio brócolis. Fiz aquilo pra chamar tua atenção - ele revela, triunfante.
 - Então tua teoria é: os opostos se atraem?
  - Ou simplesmente se completam.
  - Ou simplesmente se toleram.
  - Ou são iguais que ainda não se encontraram?
  - O óleo não se mistura com a água.
  - Polaridades reversas imiscíveis. O que não significa que o óleo não se sinta atraído pela água - ele diz, livrando as mãos dos bolsos, envolvendo e libertando as dela da prisão blues.
  Edwiges sente que as borboletas escapam de seu jardim interno e voam para o céu. A primavera chegou mais cedo para eles. No meio do verão, no meio da Redenção. Muitas outras viriam, ela pensou. Tardes de sol, céu e chimarrão. Borboletas, gato e cão. Cobertor de orelhas para o frio. Grenais sem fim, morando no Bom Fim. Livros, pedras e vulcões. Primeiras e últimas vezes. Começos dos recomeços.
  Então, selaram seu amor, onde dois lados são direitos, onde o paralelo é marco zero, onde yin e yang se completam, e onde o avesso é inexistente.
  Onde os sonhos voam.

Deu pra ti - 07/2013
ISBN 978-85-7727-520-5
Valesca Dos Santos Pederiva 


Conto publicado no livro coletivo: Contos de Som e Silêncio - Histórias inspiradas em letras de música/ wwlivros.

Inspirado na canção ' Deu pra ti' composta pelos pelotenses Kleiton e Kledir Ramil em 1980.